sexta-feira, 8 de julho de 2011

Burocracia cria desnecessário custo à ciência no Brasil

Antonio Donato Nobre 
Engenheiro Agrônomo e pesquisador do Inpe e do Inpa
Cientistas, diferentes de muitos outros servidores públicos, são figuras fáceis de auditar, porque seu maior capital é justamente seu nome. Reconhecendo este fato simples, e atendendo a demanda de uma atividade essencial para a colocação do País em condições de igualdade numa era de acirrada competição global, o MARE (o extinto ministério da administração e da reforma do Estado) solicitou e obteve em 1998 do congresso aprovação para uma alteração na lei das licitações, incluindo o seguinte texto:

/Lei 8.666, Artigo 24 (da dispensa de licitação), inciso XXI - para a aquisição de bens destinados exclusivamente a pesquisa científica e tecnológica com recursos concedidos pela Capes, Finep, CNPq ou outras instituições de fomento a pesquisa credenciadas pelo CNPq para esse fim específico (redação dada pela lei no 648/98)./

Quem está acostumado com o dia a dia da administração de ciência sabe que para o establishment jurídico/burocrático público este dispositivo libertador da lei geral das licitações, é letra morta, não tem valor prático. Como resultado, toda a comunidade cientifica nacional fica submetida a um processo burocrático de aquisição de bens e serviços que é ao mesmo tempo arcaico, ineficiente e altamente inapropriado aos projetos de pesquisa que dependem de presteza nas aquisições para se viabilizarem.

Atônitos com o que parecia ser um ato arbitrário e ilegal do establishment jurídico/burocrático consultamos informalmente o Ministério Publico Federal. A resposta nos deixou ainda mais atônitos: aparentemente trata-se de um dogma jurídico amplamente difundido e seguido à risca por juristas e administradores, de que se a lei não explicita, então a interpretação legal é conservadora e restritiva. Em outras palavras, se a lei não especificou "o que" pode ser adquirido para a ciência e tecnologia sem licitação, então /nada/ pode ser adquirido sem licitação.

A pessoa no Ministério Público que consultamos pareceu compreender nosso espanto, foi simpática à causa científica e sugeriu que a melhor forma de remover este desnecessário custo ciência Brasil seria ir de novo ao legislativo e obter dos legisladores uma nova alteração do dispositivo que dispensa a ciência e tecnologia de licitações. Só que agora incluindo de maneira explicita todos os bens e serviços que poderiam ser dispensados de licitação. Passamos então a imaginar os nossos políticos debruçados sobre uma lei já alterada por eles em 98, somente para adequá-la às exigências do dogma jurídico prevalente.

Mas mesmo supondo que alguém com tempo e disposição se desse ao trabalho de construí-la, novos reagentes, analisadores e especialidades surgem todo dia nesta atividade humana que por excelência inventa, descobre e cria. Como manter a lista atualizada, para que as novidades não sejam cortadas pela mesma interpretação restritiva do dogma jurídico prevalente?

À justiça compete a imparcialidade. É compreensível que, em uma cultura lasciva em relação à ética pública e à honestidade administrativa, exista mais cadeados nos cofres públicos. Compreensível, portanto, a origem do dogma jurídico que hoje é um dos principais responsáveis pelo custo ciência Brasil. Mas se não quisermos nos condenar ao atraso cientifico e tecnológico é urgente confrontar a interpretação restritiva da lei. Não está explicito na lei que podemos respirar, nem por isso somos proibidos de fazê-lo. Mas está sim explicito na lei que a ciência e tecnologia podem adquirir bens e serviços sem licitação, visando à eficiência do setor. Em um País onde um poder (justiça) se sente na obrigação e autorizado a anular a ação, expressa na lei, de outros dois poderes (executivo e legislativo), simplesmente pela observância automática de um dogma jurídico, sem análise de caso, sem levar em conta o beneficio da sociedade, então nos parece que este é um País disfuncional.

Colocar um crédito de confiança nos cientistas, como faculta a interpretação livre da lei 8666, significa investir no avanço necessário que beneficiará toda a sociedade. Digite no google o nome de qualquer membro da comunidade brasileira de ciência e tecnologia seguido da palavra Lattes e em segundos o currículo on-line listando toda a vida profissional desta pessoa estará a disposição. Qual outra atividade do setor público tem sua produção nominal, e pessoal, postada na internet? Quais juízes ou administradores têm seu currículo ou produtividade postados para a sociedade ver?

Assim, distinto de outros setores da administração pública, para a ciência não existe forma melhor de auditoria do que cobrar resultados. Quem, depois de lutar as vezes duramente para conseguir financiamento, usará mal um dinheiro de pesquisa? Mas se assim o fizer, provavelmente não terá resultados para mostrar, e rapidamente estará excluído do sistema de financiamento. Aí está nosso maior controle, é desta forma que o dinheiro público investido em pesquisas e desenvolvimentos vai ser de fato valorizado.

Já quando a competência cientifica que o País desenvolveu com investimentos de décadas é nivelada por baixo, pela tabula rasa da desonestidade que grassa no setor público, o custo Ciência Brasil, este sim, limita e mesmo impede pesquisas vitais. Pesquisadores respeitados e brilhantes acabam, somente por isso, apresentando produção muitas vezes pífia. O dogma jurídico, que existiria para impedir a roubalheira, garante a ineficiência, é um dos piores algozes da inovação e, a ironia maior, não consegue impedir roubos, como o noticiário nos da conta quase todo dia.

O apelo claro deste argumento deveria colocar a racionalização das licitações para os cientistas não como privilegio consagrado em lei, mas como um exemplo poderoso de que mérito verificado e transparente simplifica a administração pública e garante resultados palpáveis para a sociedade. Coloque-se todas as transações e méritos envolvidos dos procedimentos de utilização de dinheiro público na internet, como já se faz com a ciência, e uma nova ética surgirá, liberando juristas e administradores da função menos nobre e incapacitante que tem sido a geração contínua de impedimentos e cadeados, que sufocam a sociedade.

Artigo publicado no Portal da SBPC-PE.

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