A serpente é ambígua, pois representa, simultaneamente, o medo e a admiração, o respeito e a inveja, o belo e o horrível. Ao mesmo tempo que a detestamos pelo perigo de seu veneno e por sua capacidade de aparecer e desaparecer de repente, admiramos a elegância de seus movimentos e sua liberdade - mesmo presa em um aquário, parece livre.
Foi no Egito que surgiu uma versão única da serpente: aquela em que aparece comendo sua própria cauda - o uróboro. Essa serpente que se engole representa o eterno recomeço da vida, mas permite outras interpretações.
Usemos a imaginação: ao formar um círculo, o uróboro cria um espaço interno e outro externo. O lado de dentro simboliza o mundo percebido, a vida como a conhecemos, o concreto, a natureza, a ciência. E no lado de fora, de dimensão desconhecida, provavelmente infinita, caberiam todos os mistérios da vida, de sua origem e de seu fim - os grandes dilemas humanos. Fora do uróboro está Deus, e nele estamos contidos, pois o círculo delimita um espaço do todo e fragmenta o infragmentável criando um fractal do infinito.
Nossa esperança infantil e nossa arrogância ingênua desejam que o uróboro abra a boca e nos coloque em contato com o todo, com o divino, para então dominá-lo, sem percebermos que seríamos absorvidos pelo infinito e pelo eterno, tornando-nos nada. É confuso? Pode ser, mas é também fantástico. É só prestar atenção para descobrir que se o uróboro continuar a se comer terminará por consumir- se e desaparecerá, deixando-nos ao mesmo tempo sem o interno e sem o externo.
Por outro lado, se parar de se alimentar, desaparecerá por inanição, e a humanidade morrerá com ele. Parece que não temos saída. Mas, diz a lenda, o uróboro não teme por sua sorte, pois descobriu o segredo da vida eterna. Ao alimentar-se de si mesmo, mantém-se vivo, cresce e providencia a substância que irá alimentá-lo novamente. E, nesse moto- perpétuo, absorve energia do externo e mantém o interno vivo. A sabedoria do uróboro reside em não parar de alimentar-se, porém, sem extrair, de si mesmo, mais do que necessita. Uau!
A CONSCIÊNCIA
Pode parecer exagero, mas o uróboro nos ensina o segredo da sustentabilidade: não consuma mais do que você precisa para se manter vivo, e use o resultado de sua produção para recompor o substrato que lhe permita produzir. Simples, mas não fácil.
Em 1987, a norueguesa Gro Harlem Brundtland subiu com passos decididos na tribuna da ONU e explicou: "Sustentabilidade é satisfazer as necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades". Essa definição fazia parte da Declaração Universal sobre a Proteção Ambiental e o Desenvolvimento Sustentável, que passou a ser conhecido por "Relatório Brundtland". Nessa declaração encontramos propostas para novas formas de providenciar o progresso humano, sem comprometer a fonte da riqueza. O mundo se desenvolve, a população se multiplica, a economia se expande. Mas cuidado, pois nos dias em que vivemos não podemos abordar temas clássicos como a geração de riqueza, a política internacional, a educação de jovens, a administração de empresas, sem colocar na pauta o crescimento sustentável.
A ideia é transformar a inteligência humana em aliada do planeta, levando o homem a maneirar com seu instinto predador. Sustentabilidade tem a ver com a prática de consumir sem esgotar, de viver sem comprometer a vida, de ter responsabilidade com o futuro. E isso tem a ver com o que cada um de nós faz em seu dia a dia, não apenas com os pensadores e os políticos.
Pensar no futuro deveria estar na ordem do dia de cada um. Para isso seria necessária a criação de uma nova consciência humana, a de que, cuidando, não vai faltar.
A REALIDADE
Mas o que acontece é que a competitividade global está dificultando a sobrevivência das empresas e das pessoas, e é difícil, vamos ser honestos, alguém pensar no futuro se está com dificuldades para garantir o presente. Todos nós temos necessidades imediatas e procuramos atendê-las rapidamente, pois elas nos provocam desconforto ou sofrimento. Só que a modernidade acrescentou novas necessidades a nossa sobrevivência. O homem de antigamente precisava de comida, roupas, abrigo.
Hoje também, mas agora temos mais prioridades, como educação, lazer, tecnologia, comunicação, transporte de massa. Além disso, mudou a frequência das necessidades. Assim como a comida, hoje consumimos outras coisas que precisaremos consumir de novo amanhã, e depois de amanhã. A lógica da sustentabilidade nos obriga a pensar sobre a linha do tempo, pois precisamos atender às necessidades pessoais de hoje lembrando que teremos outras amanhã. Vem daí a ideia da sustentabilidade pessoal. Usando o exemplo do consumo, apenas medir se uma prestação cabe no orçamento e enfiar- se numa dívida para comprar algo de que precisamos no momento pode prejudicar o orçamento por um bom tempo. Conselho: você até pode gastar hoje o que vai ganhar amanhã, desde que não perca de vista que amanhã você vai ter outras coisas com que gastar.
É famosa a história daquele playboy que herdou uma grande fortuna e resolveu dedicar a vida apenas a gastá-la. Ele reservou uma parte do dinheiro para cada ano que imaginou que iria viver. Só que ele viveu muito mais do que imaginava. A consequência foi que passou bons anos dependendo da ajuda de parentes e amigos. Foi uma vida não autossustentável. Guardadas as proporções, isso acontece com muita gente que não previne o próprio futuro. E é também o que está acontecendo com o planeta, pois estamos gastando demais seus recursos sem preocupação com o seu esgotamento.
O LEGADO
Com frequência nos perguntamos que planeta queremos deixar para nossos filhos, mas deveríamos mesmo é nos perguntar que filhos queremos deixar para o planeta. A ideia da sustentabilidade passa, necessariamente, pela educação, pela criação de uma "mentalidade sustentável". Há comunidades em que a ideia da sustentabilidade faz parte do cotidiano. Mas, nesses casos, houve investimentos em educação e não apenas na criação de leis, normas e punições. Em Curitiba, a separação doméstica de lixo é uma das maiores do mundo. Todo o material de plástico, vidro, papel ou tecido é armazenado em algum lugar e entregue a um caminhão especial, que passa duas vezes por semana, em todos os bairros da cidade. Nesse caso, três fatores contribuíram: a educação das crianças nas escolas, a competência da prefeitura, que manteve a coleta seletiva, e a ação do tempo. Esse programa levou 30 anos para se consolidar. As novas gerações educaram as mais velhas, numa maravilhosa inversão dos fatos históricos.
Os filhos ensinaram aos pais o que haviam aprendido na escola. Educação, conscientização, estratégias, recursos. Talvez pudéssemos chamar tudo isso de vontade política, o que não tem a ver apenas com os políticos e sim com cada pessoa. Eu, pessoalmente, durmo melhor quando sinto que, naquele dia, pratiquei algo que, de alguma forma colaborou com o meio ambiente. Isso é o que o físico Fritjof Capra chama de "ecoliteracy" - alfabetização para a ecologia. É urgente que caminhemos em direção a essa alfabetização. E é bom que tenhamos pressa, porque o uróboro está quase abrindo a boca...
Notícia retirada do Planeta Sustentável.
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